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terça-feira, 10 de março de 2009

A DOENÇA DO MOVIMENTO ou NÃO ME ENGANA QUE EU NÃO GOSTO

"I Feel The Earth Move"
(Carole King)

“É certo que a percepção é ativa: continuamente 
extraímos padrões dos objetos que enxergamos, 
aguardando por uma comparação adequada.”
(REALIDADE. Os Neurônios. Nº 69, dez. 1971)

“...os olhos são comandados pelo cérebro,
e que esse, quando não entende uma
imagem, ou não está interessado em vê-la,
encontra o famoso ‘jeitinho’ para transformá-la
 em algo aceitável ou compreensível.”
(SAÚDE, set. 1987, Nº 48, pág, 41)


Quem não gosta de ilusões visuais e de desvendar os misteriosos mecanismos cerebrais? Eu sou um deles, curioso que sou desde menino pelas maravilhas da ciência! Vamos, então, a um desses casos que me intrigou desde menino.

Sempre que estou em uma rodoviária dentro de um ônibus esperando ele partir — estando ele ladeado por um ou dois ônibus —, se, por acaso, um destes ônibus começa a dar ré para partir, meu corpo reage como se o meu próprio ônibus estivesse partindo, e como não o é, isto me causa um mal-estar atípico, uma espécie de enjoo, quase vontade de vomitar. É um sintoma muito estranho, já que os olhos veem uma coisa e o corpo sente outra... Vale lembrar que neste, momento, estou concentrado em minha leitura, e se noto algo se movendo nos entornos, é com a visão periférica que percebo a movimentação. Quando a nossa visão periférica ─ que nos permite olhar de soslaio, como se diz: com o "rabo dos olhos" ─ capta o movimento que se desenrola, "por engano" são ativados mecanismos no cérebro que detectam essa movimentação. Uma matéria publicada na revista Mundo Estranho (julho 2009) sobre ilusões de ótica, comentava ao analisar uma ilustração Vale das Espirais Giratórias), cujas figuras pareciam se mover ao se passar os olhos sobre ela: 

"Esta sensação apurada da visão periférica foi muito importante ao longo da evolução de nossa espécie, funcionando como um alerta em relação à presença de presas ou de predadores."

Eis aí mais um dos casos entre a velha disputa entre percepção e ilusão, um caso de desorientação espacial, onde o envio de informações ao cérebro ocorre de modo equivocado.

Até então, tentando descrever o que eu sentia nestas situações, eu pensava que meu cérebro, ao receber estímulos visuais e sonoros, crendo que o ônibus que partia era aquele onde eu estava, reagia como se assim o fosse, e, uma vez equivocado, ficava incapaz de processar normalmente as informações tornando-se “confuso”, o que acabava por provocar o mal-estar. Esse mal-estar seria então provocado por uma falsa situação, num cérebro que fora enganado num estado de comportamento automático inconsciente. Explicando melhor, o movimento do ônibus vizinho era um estímulo visual que iludia meu cérebro, quebrando a ligação existente entre a autoconsciência e o corpo físico; assim, numa espécie de conflito multissensorial, meu sistema nervoso entendia o movimento do ônibus em que eu estava como real, mas, na verdade, não era o que acontecia, daí...


O QUE DIZEM OS CIENTISTAS

Acontece que, lendo recentemente um artigo da neurocientista Suzana Herculano-Houzel (foto), da UFRJ, pude confirmar as minhas ideias que comentei anteriormente. No artigo, Suzana afirma que os enjoos são originados no cérebro e não no estômago, como a maioria das pessoas pensa. Ela explica que o órgão sensorial se comporta como se estivesse recebendo informações espaciais contraditórias. Enquanto os olhos enxergam um movimento, o labirinto, que é responsável pelo equilíbrio do corpo, percebe outro, o que gera uma reação conflitante podendo acarretar enjoos e tonturas. Normalmente, os olhos captam informações visuais que contam ao cérebro, por meio do labirinto, onde o corpo está e em que direção se movimenta. Certas atitudes, como a leitura no carro em movimento, podem confundir o sistema nervoso sobre os dados recebidos dos olhos, ocasionando o enjoo. Hoje, sabe-se que um labirinto mais sensível é susceptível à vertigens.

Lendo também um outro artigo, de autoria do biólogo Fernando Reinach, colhi outros subsídios que complementaram as informações da neurocientista Suzana e me permitiram aprofundar mais ainda neste, diríamos, autoconhecimento biológico. 


Em seu artigo, Reinach (foto) discorria sobre o futebol e o sistema visual humano (SVH). Surgidos há centenas de milhões de anos, esse sistema foi evoluindo e se tornou mais rápido e sofisticado nas tarefas para as quais foi designado. Esse sistema permite que nosso cérebro, observando os movimentos das coisas ante nossos olhos, faça cálculos e seja capaz de ajustar nosso corpo à situação se necessário. Nosso sistema visual considera o corpo que habita como marco zero e ponto de referência. Reinach afirma que com o

“E“desenvolvimento do pensamento abstrato, nosso cérebro passou a dispor de dois mecanismos para compreender o mundo. Um, primitivo, baseado nas informações dos sentidos; outro, capaz de entender o mundo de forma analítica.”

No entanto, o cérebro humano tem dificuldade em aceitar conceitos abstratos que se chocam com observações diretas dos sentidos, e SVH, apesar de eficiente e rápido, é péssimo quando se trata de imaginar movimentos de um ponto de vista que não seja o nosso. Para exemplificar, Reinach cita como exemplo o movimento aparente das estrelas, assim entendido pelo cérebro primitivo, e diz que o analítico é quem foi capaz de descobrir o movimento de nosso planeta, que gira no sentido de oeste para leste, e esse movimento de rotação cria a ilusão de que são as estrelas é que se movem no céu, indo de leste para oeste.

Numa reportagem publicada na revista Isto É (5-5-2010), cujo tema eram os danos causados à saúde pelo uso de imagens 3D, encontramos uma ótima explicação sobre o fenômeno:

“Estes incômodos são reflexos do esforço que o cérebro faz para entender e se ajustar ao que se está vendo e ocorrendo. Eles são mais comuns em pessoas que têm o labirinto — estrutura envolvida no equilíbrio — mais sensível. 

1- O sistema proprioceptivo (composto por receptores presentes em músculos e articulação) informa sobre os movimentos realizados;

2- O sistema vestibular (estruturas do ouvido interno) informa a direção dos movimentos. Por exemplo, se acontece de cima para baixo.

O cérebro entende como conflitantes as informações. Por exemplo: a visão indica que há movimento, mas o labirinto não. Tonturas e enjoos são consequências desse 'desentendimento'. Além disso o cérebro precisa se esforçar mais para conseguir obter a sensação de profundidade proposta pela tecnologia. Isso sobrecarrega o órgão, podendo causar fadiga visual e dores de cabeça." 


UM CASO SUPREENDENTE

O célebre aviador Charles Lindbergh (1902-1974), em seu livro A Águia Solitária (1928), onde narra sua pioneira travessia do oceano Atlântico, ocorrida entre os dias 20 e 21 de maio de 1927, em certo trecho comenta um desses conflitos envolvendo desorientação espacial, que costumam ocorrer em determinadas condições de voo, como, no caso, o chamado "voo cego":


“Estes incômodos são reflexos do esforço que o cérebro faz para entender e se ajustar ao que se está vendo e ocorrendo. Eles são mais comuns em pessoas que têm o labirinto — estrutura envolvida no equilíbrio — mais sensível. "Depois manterei meu curso, permanecerei sobre a camada de estratos da tempestade e abrirei um túnel através dos cúmulos que se erguem diretamente em minha rota. Uma coluna de nuvens priva-me da visão das estrelas à frente, espalhando-se pela parte alta como um enorme cogumelo brotado sobre o céu. Aperto bem o cinturão, faço descer um pouco o nariz e ajusto o estabilizador para voo nivelado. Nos minutos que medeiam enquanto me aproximo, faço o preparativo mental e físico para o voo cego. 

O corpo há de ficar severamente inteirado de que o espírito vai tomar o comando. Os sentidos devem ser convocados e postos em linha na mais estrita disciplina, enquanto a lógica ocupa o lugar do instinto como comandante. Se o corpo tem a sensação de que cai uma das asas e a mente afirma que não é assim (porque a bola e a agulha do indicador de giros continuam centradas no lugar devido), devem os músculos obedecer à decisão do espírito, por mais disparatada que pareça. Se os olhos imaginarem ver o fulgor de uma estrela embaixo, onde pensam que deveria estar o horizonte, se os ouvidos advertirem que o ritmo do motor é demasiado lento para o voo nivelado, se os nervos afirmarem que a pressão do encosto do assento está aumentando (como acontece numa subida), mesmo assim as mãos e os pés devem ainda obedecer às ordens da mente. 
Ela também efetua um esforço tremendo quando, desprezando os instintos corporais a que esteve muito tempo obedecendo, se vê obrigada a seguir a mecânica imparcialidade de umas agulhas que percorrem seus quadrantes. Por séculos incontáveis acostumou-se a fiar nos sentidos, capazes de manter o corpo erguido em meio da noite mais escura e adestrados a recuperar instantaneamente o equilíbrio a qualquer tropeço. Ainda privados da vista, são susceptíveis de manter a estabilidade do cego. Por que, então, haveriam de ser tão impotentes num aeroplano?"

CONCLUSÕES

Então, baseando-me nestas considerações, estando eu sentado num ônibus que meus olhos dizem estar em movimento, os dados sensoriais capturados por eles são enviados ao SVH, que tentam coordená-los. Apesar de meu sistema analítico compreender o engano – que não é o ônibus vizinho que se move –, o sistema primitivo insiste em me informar que o ônibus onde estou é o que se movimenta. Daí, as estruturas citadas, procurando fazer os ajustamentos posturais, ante a confusão de dados confrontados, provocam a sensação de vertigem. Enfim, poderia dizer que esse conflito se assemelha a uma espécie de timing, onde o “tempo” da visão” é diferente do “tempo” do labirinto. O que mais estranha neste fato é que, diria, estou sempre caindo nesta "cilada", sendo novamente enganado por ela sempre que uma nova situação semelhante aconteça. Uma reportagem publicada na revista Saúde (set. 1987) cita que “Conhecer o truque de uma ilusão não imuniza contra ela.”  Diz ainda que “os olhos são comandados pelo cérebro, e que esse, quando não entende uma imagem, ou não está interessado em vê-la, encontra o famoso ‘jeitinho’ para transformá-la em algo aceitável ou compreensível.”

Em suma, nosso sistema visual, que por milhões de anos foi selecionado para acompanhar o movimento dos objetos, está acostumado, diríamos, à uma rotina realista e essas situações aparentes induzem-no à erros de processamento de informação visual, forçando-o à um alerta inconsciente que provoca sensações desagradáveis quando ele fica “confuso”.


OUTROS "MALES" ALGO SEMELHANTES

Existe um fenômeno fisiológico que causa um mal-estar algo semelhante, chamado doença do movimento, ou cinetose, que é aquele enjoo que acontece ao se viajar em barcos em alto-mar, devido aos mesmos conflitos sensórios de interpretação do cérebro, mas já viajei em alto-mar e, felizmente, jamais sofri o mais leve enjoo. 


O astrônomo Carl Sagan (foto), em clássico seu livro Dragões do Éden (1978), Prêmio Pulitzer – para muitos a mais bela obra do autor –, cita numa passagem, uma dessas curiosas “peças” que o cérebro nos prega:



“Crises convulsivas (...) têm sido relatadas quando um paciente epiléptico está dirigindo um automóvel ao pôr ou ao nascer do sol ao longo de uma cerca de estacas pontiagudas entre ele e o sol: a uma determinada velocidade, as estacas interceptam o sol na exata velocidade crítica capaz de produzir uma oscilação na frequência ressonante para iniciar tais crises.”

Sagan, provavemente se referia ao fenômeno epilético descrito pela primeira vez pelo Dr. Marcel Lapipe, então médico do Hospital Sainte-Anne, de Paris, fenômeno este considerado “insólito, mas verossímel”, usado para explicar uma série de mortes estranhas em acidentes de trânsito na Rodovia 7, entre Briare e Montargis (ambas, comunas francesas), acidentes recorrentes que mataram inúmeros membros da família Michelin entre 1937 e 1949:

“Um indivíduo que recebe nos olhos 10 flashes por segundo entra em crise, se é predisposto à epilepsia. Quando o sol se põe atrás da fileira de árvores da Rodovia National 7, um automobilista que vá a 120 quilômetros por hora, recebe, pelo jogo de sombra e claridades, entre os troncos e as ramadas, 10 flashes luminosos por segundo.”


EPÍLOGO

Não, amigos, definitivamente eu não sofro de crises convulsivas, tampouco da doença do movimento diante de ilusões visuais. E, neste último caso, o meu problema não é com veículos aquáticos e a água, melhor dizendo, com o vaivém das águas, mas tão-somente com ônibus e carros – e eu sentado num banco ou poltrona, lendo ou olhando para fora da janela –; aliás, sempre tive o costume de ler dentro de ônibus e carros e sempre sentia mal-estar, mas isto são páginas viradas na minha vida – de tanto insistir, meu corpo se adaptou. No entanto, a ilusão do falso movimento e o sintoma do enjoo ainda persistem; na verdade, penso que eles surgiram depois que o meu cérebro concordou com minha insistência em ler dentro de veículos em movimento. 

Leitor voraz que sou – e, no caso, aquele que perde o ponto onde devia descer –, meu corpo tinha mais é que se adaptar mesmo, para fazer jus à essa necessidade inata de ler em qualquer lugar de que “padeço”, seja em pé numa fila, seja andando pelas ruas, no banheiro etc. Às vezes penso que meu dia deveria ter 48 horas, só para poder passar metade deste tempo lendo, mas... 


Enfim, não sei de alguém que após saber que as estrelas não se movem, sentiu tonturas com a rotação da Terra, sujeito do tipo maluco beleza – “Pare o mundo que eu quero descer!”, mas, brincadeiras à parte, imagino que o acontece com meu cérebro, nestas situações dentro de ônibus, deve ser um protesto seu, que ainda guarda memórias do tempo em que eu não podia ler com veículos em movimento – hábito que, decididamente, não lhe fazia bem –, e hoje, nos momentos de ilusão de falso movimento veicular, ele deve bradar lá no seu íntimo: – “Não me engana que eu não gosto!”



BIBLIOGRAFIA:  11 fontes; 
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